segunda-feira, 29 de maio de 2006

"Sem-ossos"... alcunha de menino


chema madoz

"Sem-ossos" era alcunha dum menino. Onze anos.
Corria a lenda pela escola:
- Foi num enxerto de porrada dado pelo pai...
Nunca me confirmou o enxerto. Limitava-se a
esclarecer:
- Perdi uns ossos num traumatismo craniano...
Nunca aprofundei a causa.
Poderia ser verdade...

Naquele dia, entrou no gabinete acompanhado
por um colega meu:
- Deixo-te aqui esta encomendinha...
- Outra?
- Ele que ta conte!

Confessou tudo não escondendo qualquer pormenor
mais importante. De início, fiquei desarmado com
a verdade e com o olhar molhado do "sem-ossos".
Fraquezas...
Conversei, calmo. Subi o tom de voz. Ralhei.
Barafustei. Passei-me.
E uma lapada esteve por um triz...

Contive-me nem sei como...
O menino esperava qualquer desenlace.
Das palavras à acção. Do ralhete à suspensão.
Acreditem! Não era caso para menos...

Mas não. Nada de mais grave aconteceu.
Num instante, sem eu o prever, lançou-se ao meu pescoço
e a chorar:
- Seja o senhor o meu pai...
- Desaparece já daqui para fora! Ala! Não te quero aqui outra vez!

Já deve ter ouvido o resto da ralhete depois da porta
do gabinete. E ainda bem... não fosse o "sem-ossos"
ver-me chorar e perguntasse com o seu ar de menino:
- Por que está a chorar?
E eu não soubesse reponder...

Tenho a certeza de que o hei-de encontrar um dia
e saberei pela verdade dele por que razão disse
o que disse. E, sobretudo, fez o que fez...

Ainda hoje, estou por saber se a frase revelava
a sua vontade ou se foi o argumento daquele dia
para se safar das consequências de mais uma malandrice...

Se o virem por aí, digam-lhe que preciso
de falar com ele para que me conte a verdade...

Tinha só onze anos
o meu menino traquinas
alcunhado de "sem-ossos".

daniel

19 comentários:

Anónimo disse...

Porque não exprimimos o que sentimos, na hora? Ficamos à espera de não sei que tempo...
Um texto doce, espelhando o universo infantil e a nossa difícil relação com ele.
Beijos

Unknown disse...

"lique"
Muitas vezes por fraqueza... outras, por respeito... outra vezes, porque podemos ser mal-entendidos... E, ainda outras por...

Beijo.
daniel

lisa disse...

Crianças!!!
Uma fase complicada e difícil esta.

Beijo.

Unknown disse...

Confirmo... Mas há outras...

Beijo.
daniel

Unknown disse...

é há outras bem piores ... :)))
tão menos inocentes, tão menos cândidas..
beijos de alguém com ossos,
de alguém com ossaturas do ser

Belinha disse...

As crianças, muitas vezes, têm tanto de encantador como de cruel...
Faz parte da sua natureza testar e abusar, transpor o risco...
...mas, embora possa ser sufocante no momento, passados uns anos essas histórias são deliciosas!

Quanto à alcunha... é engraçada, confesso. Eu era a Belinha... "Chapada na Testa" para os amigos! ;)

Belinha disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Unknown disse...

"ailéh"
... e outras bem melhores!
As generalizações matam...

Outros como os teus.
daniel

Unknown disse...

"belynha"
Ex-"Chapada na Testa"...
Por que seria... a alcunha?
Estava-se mesmo a ver como era a Belinha?
Os últimos textos e os comentários respectivos têm sido motivo para encontrar respostas para algumas questões.
Por exemplo:
Que característica/s da criança gostam certos adultos de assumir?
O que é ser criança enquanto adulto?

daniel

Belinha disse...

Ser criança é ser autêntico: acariciar quem se ama, agredir quem nos incomoda.

Unknown disse...

A autenticidade/espontaneidade será a característica mais procurada pelo adulto.
Outras haverá...
Mas será "ser criança" mais uma das nossas utopias que se realiza caminhado?

daniel

Rooibos disse...

História bonita. Fundamento na experiência?... Autobiográfico?... Este ano tenho tantos meninos assim... Mas só choro em casa. Nunca ao pé deles.

Unknown disse...

Daniel Sant'Iago é professor...
Confirmo.
O autor

Autobiográfico? Sim, "rooibos"... no essencial!
Tenho para mim que, se chorássemos junto a eles, os nossos alunos amavam-nos mais...
Foi num momento desses que eles não me largaram... um dia!

daniel

Rooibos disse...

Mas a realidade de alguns já é tão triste... Com que direito podemos nós confrontá-los com a nossa própria tristeza na sua expressão mais real, a lágrima?... Sei que tudo depende da situação...

Unknown disse...

Tens toda a razão, "rooibos"! Depende das situações em concreto...
Estas generalizações...
Mas, naquele dia, os meus meninos sentiram-se gente grande capaz de me
ajudar.
E eu... deixei! Mal feito? Está feito!

daniel

Rooibos disse...

Bem feito!

Unknown disse...

Não tenho a certeza...
Esta tendência para ter dúvidas...
Que o tenha sido... ainda que sem siso!

daniel

Rooibos disse...

Só tem dúvidas quem tem consciência de si e dos outros...

Unknown disse...

É, "rooibos", não é?
Quem me dera ter senso e siso temperados com o sal q.b. da dúvida!

daniel