quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

maria alice III



Não resisti!
Abri meia-porta da minha janela-saca-
da.
Pelo constante rodopiar da cabeça,
percebia-se
que a senhora gorda e bai-
xinha desconhecia para
onde fugira a
criancinha e donde regressaria.


O fresco da manhã inundou-me as narinas.
E apercebi-me que deixara de haver drama.
A dita
estendia o braço acima da cabeça e,
com a palma da
mão virada para baixo, agi-
tava-o freneticamente no
sentido vertical,
uivando ainda um anda-cá-anda-cá-anda-cá.


Segui o gesto com o olhar. Ao fundo da rua
do café do
Senhor Mário, numa curva do em-
pedrado do passeio,
ainda húmido do borriço
daquela manhã, derrapava um
ser que de cri-
ancinha nada tinha.


Uma cadelinha!
A tão gritada Maria Aliiiiiiiice... era uma
cadela. Vestia
sobre o cinzento tronco tos-
quiado um colete vermelho
com mangas à cava.
Na ponta da cauda e nas quatro
patas farfa-
lhudos pompons de pêlo. Orelhas hirtas e
ma-
gra que nem caniço.


E entre palavrinhas e latidos de carinho,
aconchegou-se
no colo da dona.
E entre lábios e beiços trocaram-se lambi-
delas e beijos
salivados.
Marchou o que restava do bolo de arroz.
Guardado esta
va o bocado...

Uma mútua paixão correspondida.
À "maria alice" cabia
o papel de prozac
matinal da senhora baixa e gordinha.


Cerrei a meia-porta da janela-sacada.
Corri as cortinas.

Descalcei os chinelos de quarto e
regressei à cama já fria.


Daniel Sant'Iago

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

maria alice II

Como fazer-vos ouvir aquele uivo estridente?
Como... se foi indescritível e entre dentes?

A hiena entoou num tom pesado e martelado.

(Exactamente como quando o papá, vestida a
pele de lobo mau, quer dar a sensação de
que é lobo mesmo e que está deveras furioso.

Malha, então, em cada sílaba com pausas in-
ter
mitentes... An-da-cá-que-que-ro-con-ver-
sar-con-ti-go... Lembram-se?)


Dado o tom, a senhora gorda e baixinha
atingiu, na sílaba "li", duas oitavas
acima, um silvo prolongado até à exaustão
do fôlego final. Quase que se ia... A úl-
tima sílaba já não interessava. O que
ver-
dadeiramente importava não era o
nome. O
essencial do chamamento residia
naquele
cume escarpado,
bem esganiçado, total-
mente fora de si. Sem
dó...

Foi esse monstro agudo e obtuso que me
furou os tímpanos. E, de tão lancinante-
mente repetido... fiquei muito preocupado.
Deveras! Caso para 115... o 112 de então?

Perdera-se uma criancinha, com certeza...
E teria zarpado para bem longe dado ser
tão
insistente o uivo da senhora gorda e
baixinha.

Parte do bolo de arroz mantinha-se entre
os dedos...

- Maria Aliiiiiiiiice!

Daniel Sant'Iago

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

maria alice I

Domingo.
Oito horas e quinze minutos duma manhã
fresquinha.
Acordo sobressaltado. Logo naquele dia
em que um filme serôdio e uma insónia
precoce detinham-me encovado entre lençóis.
Pulo da cama. Um ai. Subo o estore. Outro.

(Esqueci-me de vos informar que moro num
primeiro andar, mesmo em frente dum café.
O horário? Das 8 às 24. O Senhor Mário,
o patrão,é muito pontual. À entrada e à
saída. Já agradeci à esposa ele ser assim.
Vantagem para mim... de ele ser casado com
uma mulher de saudáveis prazeres na vida!
Porquê? Ora.. porquê.. porquê! Porque sim!)

Contava-vos eu que, em dois ais, estava
à minha janela de sacada espreitando por uma
nesga da cortina de renda. À entrada do café,
uma senhora muito gorda e baixinha sufocava,
por entre migalhas de um bolo de arroz:

- Maria Aliiiiiiiiiiice!

Daniel Sant'Iago

sábado, 24 de fevereiro de 2007

enterro e flores


"sacrifice"
mark rothko


Não respondi ao grito.

Vivia longe e ocupado.

Pensava num título de um documentário
de homenagem a Vinicius de Moraes:

"Quem pagará o enterro e as flores
se eu morrer de amores?"

Fora de mim não escutei uma palavra tua.
Castiga
a minha presunção.
Quando eu me deitar de costas, põe-me
um pé na garganta e outro na boca.

E passa sobre mim três vezes.

Donde me vem tanta soberba?

Daniel Sant'Iago

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

que assis seja


"bleu II" de joan miro

que

a dor seja água
e a mágoa flor

a prisão...
...
e o amor uma tenda

seja assis
assim seja



(Este texto encontra-se publicado...

... no meu livro)

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007


"quarta feira de cinzas"
benjamin silva


sou
pó do levante
na guerra da vida

serei
do ocaso
nos restos
da morte

cinzas dum entardecer
em quarta-feira de páscoa

Daniel Sant'Iago

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

ela e ele e eu


"hustler" de arthur sarnoff

- Fazes-me aquilo? - ele.
- Não insistas! - ela.
- ...

- ...

- ... - insistia ele
.
- ... - repetia ela.
- ...
- Dá-me vómitos! Engasgo-me!
- Só uma vez... - ele.
- Nunca farei isso! - ela.


Aquilo e isso...
eram...

Julgo eu.


(Este texto encontra-se publicado...

... no meu livro)

domingo, 18 de fevereiro de 2007

kitsch_text



no segredo dum rochedo
introduza
na blusa
sem medo
dois dedos
húmidos da boca
e
provoque o toque
nos brinquedos

se

con_tusa do choque
se sentir confusa
sem rei
nem roque
e
se usa e abusa
dos berloques
sairá da toca
deusa ou musa
que
me seduza
agora
sob arvoredo
sem blusa
nem segredo

e
sem medo
das bocas sujas


Kitsch_test
!


Este
texto é um teste.
Ao meu mau gosto.
À minha escrita obscena.
E à mediocridade carnavalesca.

Reli obscenidades picantes.
Bocage e
Marcial.
Senti-me desculpado!
É que... (já) Bocage não sou...

Mas... que título para este escrito?

A títulos de "posts" em blogues exige-se-lhes
síntese e a amarração
fulminante dos leitores.

Escolhi um híbrido "kitsch" entre:
"Uma merda de texto!"

"A Bocage desbocado, Rei do Carnaval!"
"Hino à parvoíce!"


Que tal? Indecente? Eu? O texto?
O título... não! É só "kitsch"!
Mas que dizer
face ao soneto de Bocage?
"Cagando estava a dama mais formosa..."

Comentem mas não me desanquem!
Acarnavalem comigo!
Des_(mas)_cara_da_mente!

Daniel Sant'Iago

sábado, 17 de fevereiro de 2007

máscara seis




e
a um intenso prazer
chamou-lhe o confessor
pecado e_mortal


Daniel Sant'Iago

aqui

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

máscara cinco





à ternura
sem eco
chamo-lhe tortura


Daniel Sant'Iago

aqui

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

máscara quatro





à guerra
chama-lhe o ditador
um caminho para a paz



Daniel Sant'Iago

aqui

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

máscara três





ao sorriso
entre quem ama
chamo-lhe hu_amor


Daniel Sant'Iago


aqui

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

máscara dois






ao infiel

quando ama
chama-se amante

Daniel Sant'Iago

aqui

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

máscara um






ao teu silêncio
quando me magoa
chamo desprezo


Daniel Sant'Iago

aqui

sábado, 10 de fevereiro de 2007

dia não


"depression"
alexey linkov


hoje

o sol

não subiu o monte
...
a lua
morreu em quarto minguante
...
as estrelas
desmaiaram sem luar


hoje
não existiu

(Este texto encontra-se publicado...

... no meu livro)

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

sol - pôr

Solto as rédeas ao freio.
Do meu olhar.


Pelo ocaso, o azul acinza.
E a cinza enrola-se à prata.
A_fogo em chamas nas águas.

O silêncio não marulha.
E da terra ecoa o nada.

No banco de ripado verde,
escurecem as páginas do moleskine.

Cego, estalo o elástico negro.
Sobra a franja da fita do marcador.


Eu sei porque quero que a alma desespere.
Escorreu-me a esperança por entre os dedos.

- Tenho uma triste notícia a dar-te.
A Teresa morreu.


Cedeu ao aneurisma. Numa cama deslavada do hospital.
De São José.

Resta-me o sal no pôr do sol.


Porto Côvo.

Aos tantos do tal de mil novecentos e muitos!

Daniel Sant'Iago

terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

olhar de amêndoa e mágoa


"mother and child" de gustav klimt

Tropecei nos teus olhos de amêndoa e mágoa.
Talhes de doçuramara na ira dum olhar. Eiras

de grão moído. Pó entre mós. De pedras rudes.

De ataque com funda. Do fundo. Mal ditas.

- O meu marido...

Segredei-te o meu ombro.
Reservei-te um bilhete de ida.

Manchei-te os lábios de cafés.
Li-te poesia na Fnac do Colombo.

Cravei-te no olhar o verde da vida.

- O teu filho...
E adubei-te com uma mancheia de sorrisos.

Dos olhos amendoados regressou a mágoa.
Comigo.
Em nódoas feridas na pele.
Do meu casaco.


Daniel Sant'Iago

ano dois









BRINCO DE PALAVRAS
Daniel Sant' Iago

sábado, 3 de fevereiro de 2007

POETAS

Tiram-me sempre o pão da boca.

Que fome!

POETAS!
Que sede!


Da água fresca

com que me encharcam o deserto.

daniel

"table and chair"
peter coker

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

sopa de letras


"universo de escrita"
antónio ole


letras em massa
em barra azul
dum prato de sopa

três
vogais
a-e-o
consoantes
m-r-t
três

palavras tijolos
muro de sabores

morte ao amor
a arte ao amar
o aroma ao tomar-te
em maré de amor
a morte ao amar-te
a romã em roma
o ar mora em marte

- Come a sopa, Daniel!

daniel