sexta-feira, 30 de novembro de 2007

in_decisão


"as i opened fire"
roy lichtenstein


hoje
não me apetece
escrever sobre nada


Que tal sobre o fogo?

Não!
mas apetece-me gritar
Fogo! Fogo! Fogo!

Uivam mil sirenes.
Incêndios gelados.
Um tiro no escuro.

Também não!


só se escrevesse
sobre um fogo fogoso
sobre um fogo ofegante
sobre um fogo sufocante


Está bem!
Eu escrevo!

O fogo sentido
é doce
e


Não sou capaz!
Iria abrir fogo!
Atiçar as chamas!
Brincar com o fogo!


Não!
Hoje, não!
Hoje, não me apetece!
Hoje é Dia do Silêncio!

Hoje é o meu dia!
Só meu!

És minha, decisão?

Daniel Sant'Iago

terça-feira, 27 de novembro de 2007

táctil


"basic instinct"

na noite da última fila
numa sala de cinema
perto de ti

sentimo-nos

tu
vestida
e nua

eu
uma mão
a tua

Daniel Sant'Iago

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Que pêssego!


"peachy keen" de phyl schok

Não resisti à oferta dum pêssego, fruto do
teu pomar, carnudo,
sumarento, rosáceo e
maduro, envolto em penugem sedosa
que
acamei de cima a baixo e do centro
para os lados.


Rodei-o nas palmas das mãos.
E, juntando as unhas dos polegares
- bem no alto,
bem no centro, onde secara o pedúnculo - e a
polpa
dos dedos restantes em redor, abri-o
num golpe , de par em par,
em dois
hemisférios por um meridiano
nascido dos polegares até

ao bico do fundo.

Escorreu o aroma do suco pelos dedos
e nas pontas sorvi-o gota a gota,

pingo a pingo.

Solto o caroço, suguei-o pela língua
ao céu-da-boca e volteei-o mil vezes

até senti-lo duro, grosso e limpo.


Foi então que, esfomeado, sedento e guloso
o devorei, pedaço a pedaço
até o sabor
desaparecer em perfume.


Ao caroço enterrei-o no teu pomar na esperança de que,
no próximo ano,
não precises de mo oferecer e eu o
possa colher sem ter que to pedir.


Daniel Sant'Iago

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

abraça - me















"a loving hug"
edward burne-jones


cuida de mim

não me cures


porque se me curares

deixas de te preocupar

comigo
que te afligia


porque se me cuidares

continuas a olhar
por mim

sem fim


Daniel Sant'Iago

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

narciso

"echo and narcissus" de j w waterhouse

do miradouro

apregoei a sul


Sou feliz!


da montanha
volveu o azul

Sou feliz!

entendi
por fim
como é bom
ter eco
mas
feliz


Daniel Sant'Iago

terça-feira, 13 de novembro de 2007

coktail-bar


"coktail pour white sax"
pierre farel

Nem os teus nem os meus.
Nem os teus nem os meus teres.
Nem os nossos poderes e saberes.

Quem nos impede de romper
a teia cruel
o limite imposto
a grade assumida,
retraços entre ti e mim
naquele momento infinito
cela e selo duma inconfidência?

Mesmo que nos soltássemos à desfilada
numa correria louca e cavalgada infindável
assaltando montes montados rios e ribeiras
pertos e longes sobre obstáculo de soberba

no ténue limite cruel por nós fixado
chegado o tempo da decisão inadiável
de sorrir juntos ou sofrer separados

tu
eu sei que choras
eu
também e não só de madrugada
lágrimas contidas em cofre-segredo
para tarde ou cedo
nos aplacar a sede

Daniel Sant'Iago

sábado, 10 de novembro de 2007

receita para viver em coerente contradição


"opposition of lines red and yellow"
piet mondrian


quando assumo
tomo como meu um erro ou uma posição
tomo consciência dum acto que cometi

quando me contradigo
não digo o que penso
não faço o que digo
não ajo como penso

quando assumo uma contradição
tomo como minha a incoerência

E depois?

assumo a incoerência
está assumida
acabou!
ou
assumo a incoerência
e afinal
eu quem sou?

assumir uma contradição é em si a contradição
ou faço por esquecer ou sou novelo sem pontas

Como é possível ser sem viver em contradição?

Sim!
É possível desde que sofras.

O sofrimento foi a nossa solução!

Daniel Sant'Iago

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

canção para uma madrugada de outono


"seduction"
natalie savard


Acordar-te-ei pela madrugada. Que não é noite nem manhã.

Só se dorme de noite. De olhos às escuras. Só se acorda
de
manhã para a lufa-lufa.
As insónias são para as madrugadas.


Numa madrugada, depois de amar, vamos ver o nascer do sol.

Do alto do monte. Embrulhados num único cobertor.

Contigo não se morre de tédio.
Não morrerás de tédio.
Mas a sorrir.


“Espera por mim. Não me demoro. Só o tempo de deixar
rolar uma única lágrima. Suspirar bem fundo uma vez.
Até já?”


As palavras!
As minhas palavras!
Só aqui me doem. Junto de ti não preciso de sussurros.
Basta olharmo-nos.
Escrevemos cá dentro. Não sei bem onde. A fogo.
Palavras pirogravadas em lenha seca.
Aqui, basta que saiam. Que as leias.
Hoje, só tu as leste. São tuas somente.

Não vamos dormir, pois não?
Vamos amar toda a noite.
Com descansos pelo meio.
Fumar um cigarro.
Beber um copo.

Para continuar.
A amar.
A fumar.
E a beber.

Daniel Sant'Iago

domingo, 4 de novembro de 2007

oração para um dia amargo


"let's play ball" de jim daly

quero lembrar o miguel quando vestia calções
jogava ao pião
corria com o arco
saltava num avião desenhado aos quadrados no chão

Toca a aviar!

quero lembrar o miguel quando era puto
sem creches nem jardins de infância
estudante-trabalhador sem salário
menino de têpêcês em mochila-albarda

Toca a viar!

quero lembrar o miguel quando obedecia
vai apanhar erva pr'os coelhos
vai cortar as couves pr'os patos
vai levar a lavadura aos porcos

Toca a aviar!

Quero lembrar o miguel quando,
no dia seguinte, tremia:

- Não fiz os trabalhos de casa...
fui apanhar erva pr'os coelhos...

cortar as couves pr'os patos...
levar a lavadura aos porcos...


Toca a aviar!

quero lembrar o miguel o meu herói
quando o apressavam o pai e a mãe
e a professora para o trabalho de
criança
-estudante sem salário porque
em troca davam-lhe o pão e a educação
se ele não se negasse a
apanhar a erva pr'os coelhos
cortar as couves pr'os patos
levar a lavadura aos porcos
fazer os trabalhos de casa

Toca a aviar!

"Tó Caviar" era a alcunha dum colega que,
entre as aulas da manhã e da tarde,
almoçava uma-entrada-de-marisco-sopa-prato e
à-sobremesa-um-petisco:

de frutas e doces.

Toca a aviar, Miguel, toca a aviar!

Daniel Sant'Iago

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Eu, abaixo-assinado, declaro(-me)...


"long live love"
niki de saint phalle


Amo-te!


Estive prestes a deixar só assim.
Sem mais nada porque é dia santo.

forma verbal pronominal
sujeito sub_entendido
predicado na pessoa primeira
tu
a pessoa atingida


continente e conteúdo
significante e significado
foneticamente emudecida
sintacticamente uma roda
à dentada


amo-te
um tanto tão pouco
um simples tão difícil
um fácil tão inútil
um útil tão inutilizado

amo-te
eu, D...
tu, X...

Daniel Sant'Iago